sábado, junho 19, 2010

Ponto final

Ele estava pousado em cima da mesa, quieto, mas piscava-me o olho. Eu estava sentada no sofá, curiosa, olhava-o desconfiada. Estávamos em 1998 e aquele era o primeiro livro de José Saramago que me chamava a atenção, porque me incomodava. Eu sabia que o autor tinha sido distinguido com o prémio Nobel mas, que raio, também sabia que ninguém conseguia passar da primeira página dos livros dele. Toda a gente, toda a gente mesmo, dizia que ler o "Memorial do Convento" era tarefa hércula e nem sequer valia a pena o esforço porque, apesar de giro, não era pontuado, dava dores de cabeça e não estava correcto. Não é assim que se escreve. Era por isso que me sentia desconfiada com o "Ensaio sobre a Cegueira" a piscar-me o olho a partir da mesa da sala. O livro não era meu, é óbvio, era de uma amiga com quem dividia casa na altura. Perdi a conta às vezes que repeti a pergunta: "como é que consegues ler isto?". Já não procurava resposta, saía-me retoricamente da boca, incrédula. E ele lá estava, sereno, sem me deixar em paz. Lancei-me a ele e li a primeira página, só para sustentar a verdade conhecida de que é praticamente impossível ler um livro de José Saramago, mesmo que dois ou três lunáticos tenham decidido que aquele é um estilo digno de receber um Nobel de Literatura. Nem sequer sabem português, quer dizer, tem o valor que tem. Uma parte do meu cérebro ainda estava nesta onda de pensamento quando outra começou a ganhar espaço. Afinal o que se passa com o médico? Fui apanhada de surpresa. Médico, qual médico? Olhei para o livro, já estava na página 36! O meu mundo caiu naquele momento. Saramago não é o escritor impossível de ler? Como cheguei até aqui assim, sem dar por isso? Como? Tornou-se no meu escritor português favorito e o "Ensaio sobre a Cegueira" ocupa lugar de destaque nos livros da minha vida.

1 comentário:

early bird disse...

o Ensaio sobre a Cegueira também foi o primeiro li que li dele. e gostei realmente ^^